Dida Sampaio/Estadão -
TRANSAÇÕES
FINANCEIRAS DO MILITAR DO EXÉRCITO QUE ATUAVA COMO AJUDANTE DE ORDENS
DO EX-PRESIDENTE FORAM MAPEADAS PELA POLÍCIA FEDERAL POR ORDEM DO STF
- MILITAR PAGAVA CONTAS DO CLÃ PRESIDENCIAL EM DINHEIRO VIVO AO MESMO TEMPO QUE OPERAVA UMA ESPÉCIE DE “CAIXA PARALELO” NO PLANALTO QUE INCLUÍA RECURSOS SACADOS DE CARTÕES CORPORATIVOS
- PAGAMENTOS ERAM FEITOS EM AGÊNCIA DO BANCO DO BRASIL LOCALIZADA DENTRO DO PALÁCIO
- ENTRE AS CONTAS PAGAS ESTAVA A FATURA DE UM CARTÃO DE CRÉDITO USADO PELA EX-PRIMEIRA-DAMA MICHELLE BOLSONARO, MAS EMITIDO EM NOME DE UMA AMIGA DELA
- ÁUDIOS COM A VOZ DE BOLSONARO REUNIDOS PELA INVESTIGAÇÃO, SOB COMANDO DO MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES, INDICAM QUE O PRESIDENTE CONTROLAVA E TINHA CIÊNCIA DE TUDO
- RODRIGO RANGEL E
- SARAH TEÓFILO
20/01/2023 15:10
As
investigações que correm no Supremo Tribunal Federal sob o comando do
ministro Alexandre de Moraes avançam sobre um personagem-chave que, por
tudo o que se descobriu até agora e por sua estreita proximidade com
Jair Bolsonaro, deixará o ex-presidente ainda mais encrencado.
As
descobertas conectam o antigo gabinete de Bolsonaro diretamente à
mobilização de atos antidemocráticos e lançam graves suspeitas sobre a
existência de uma espécie de caixa 2 dentro do Palácio do Planalto, com
dinheiro vivo proveniente, inclusive, de saques feitos a partir de
cartões corporativos da Presidência e de quartéis das Forças Armadas.
O
personagem em questão é o tenente-coronel do Exército Mauro Cesar
Barbosa Cid, o “coronel Cid”, ajudante de ordens de Jair Bolsonaro até
os derradeiros dias do governo que acabou em 31 de dezembro.
O
militar compartilhava da intimidade do então presidente. Além de
acompanhá-lo em tempo quase integral, dentro e fora dos palácios, Cid
era o guardião do telefone celular de Bolsonaro. Atendia ligações e
respondia mensagens em nome dele. Também cuidava de tarefas comezinhas
do dia a dia da família. Pagar as contas era uma delas – e esse é um dos
pontos mais sensíveis do caso.
Entre
os achados dos policiais escalados para trabalhar com Alexandre de
Moraes estão pagamentos, com dinheiro do tal caixa informal gerenciado
pelo tenente-coronel, de faturas de um cartão de crédito emitido em nome
de uma amiga do peito de Michelle Bolsonaro que era usado para custear
despesas da ex-primeira-dama.
Vinícius Schmidt/Metrópoles |
QUEBRA DE SIGILO PERMITIU MAPEAR TRANSAÇÕES
Já
era sabido, há tempos, que Cid se tornara alvo dos inquéritos tocados
por Moraes, em diferentes frentes. Ainda no ano passado, o jornal Folha
de S.Paulo noticiou que mensagens de texto, imagens e áudios encontrados
no celular do oficial do Exército levaram os investigadores a suspeitar
das transações financeiras realizadas por ele.
Pois
bem. Depois disso, Moraes autorizou quebras de sigilo que permitiram
revirar pelo avesso as operações realizadas pela equipe do
tenente-coronel, muitas delas com dinheiro em espécie, na boca do caixa
de uma agência bancária localizada dentro do Palácio do Planalto (foto
acima).
As
primeiras análises do material já apontavam que Cid centralizava
recursos que eram sacados de cartões corporativos do governo ao mesmo
tempo que tinha a incumbência de cuidar do pagamento, também com
dinheiro vivo, de diversas despesas do clã presidencial, incluindo
contas pessoais de familiares da então primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Durante
a investigação, os policiais se depararam com um modus operandi que
lembrava em muito aquele adotado pelo clã bem antes da chegada de
Bolsonaro ao Palácio do Planalto e que, anos depois, seria esquadrinhado
pelo Ministério Público do Rio de Janeiro nas apurações das rachadinhas
do hoje senador Flávio Bolsonaro, o filho 01 do ex-presidente. Dinheiro
manejado à margem do sistema bancário. Saques em espécie. Pagamentos em
espécie. Uso de funcionários de confiança nas operações. As semelhanças
levaram a um apelido inevitável para as transações do tenente-coronel
do Exército: “rachadinha palaciana”.
A
certa altura do trabalho, os investigadores enxergaram indícios fortes
de lavagem de dinheiro. Chamou atenção, em especial, a origem de parte
dos recursos que o oficial e seus homens da ajudância de ordens
manejavam.
Para
além do montante sacado a partir de cartões corporativos que eram
usados pelo próprio staff da Presidência, apareceram indícios de que
valores provenientes de saques feitos por outros militares ligados a Cid
e lotados em quartéis – sim, quartéis – de fora de Brasília eram
repassados ao tenente-coronel. Os detalhes dessas transações ainda estão
sendo mantidos sob absoluto sigilo, trafegando entre o gabinete de
Moraes e o restrito núcleo de policiais federais que o auxilia nas
apurações.
NA BOCA DO CAIXA, DENTRO DO PLANALTO
As
investigações desceram à minúcia das transações. A partir dos primeiros
sinais de que várias delas haviam sido feitas em espécie, os policiais
esquadrinharam as fitas de caixa e pediram até as imagens do circuito de
segurança da agência bancária onde os pagamentos eram feitos – a
agência 3606 do Banco do Brasil, que funciona no complexo do Palácio do
Planalto.
Da
mesma forma que o MP do Rio conseguiu documentar o notório Fabrício
Queiroz, operador das rachadinhas, pagando em dinheiro vivo contas de
Flávio Bolsonaro, os policiais a serviço de Alexandre de Moraes foram
buscar os registros em vídeo de que pessoas da equipe de Cid, o ajudante
de ordens do presidente, eram as responsáveis por quitar – também em
espécie, assim como Queiroz – os boletos do presidente, da primeira-dama
e de seus familiares.
Reprodução |
MICHELLE E O CARTÃO DA AMIGA
Entre
os pagamentos, destacavam-se faturas de um cartão de crédito adicional
emitido por uma funcionária do Senado Federal de nome Rosimary Cardoso
Cordeiro. Lotada no gabinete do senador Roberto Rocha, do PTB do
Maranhão, Rosimary é amiga íntima de Michelle Bolsonaro desde os tempos
em que as duas trabalhavam na Câmara assessorando deputados.
Rosi,
como os mais próximos a chamam, é apontada como a pessoa que aproximou
Jair Bolsonaro e Michelle quando o ex-presidente ainda era um deputado
do baixo clero que nem sonhava um dia chegar ao Palácio do Planalto.
Moradora de Riacho Fundo, cidade-satélite de Brasília distante pouco
mais de 20 quilômetros do centro do Plano Piloto, até hoje ela mantém
laços estreitos com o casal.
Rosimary Cordeiro com Jair Bolsonaro e o general Augusto Heleno Ribeiro no avião Presidencial - Reprodução/Redes sociais |
Veja galeria:
A
antiga amizade ganhou toques de glamour depois que a senhora Bolsonaro
virou primeira-dama do Brasil – passou a contar, por exemplo, com
viagens a bordo de jatinhos e até do avião presidencial. Em maio do ano
passado, Rosi acompanhou Michelle em um tour por Israel que contou,
ainda, com a participação da então ministra Damares Alves. As duas
também foram juntas, em voos fretados pagos pelo PL, para eventos da
campanha de Jair Bolsonaro à reeleição.
Em
uma viagem oficial de Bolsonaro ao Maranhão, Rosi foi convidada a
integrar a comitiva presidencial e registrou fotos ao lado dele na
cabine principal do Airbus que serve à Presidência. A ascensão de
Michelle fez a amiga também ascender no Congresso. No início do governo,
era telefonista no gabinete de Rocha, aliado de Bolsonaro. Logo depois,
foi promovida e viu seu salário aumentar. No fim do ano passado, ela
ocupava um dos cargos comissionados mais altos da equipe, com salário de
R$ 17 mil brutos. Como o mandato de Rocha está a dias do fim, Rosi já
tem a promessa de ganhar uma função no futuro gabinete de Damares,
eleita senadora pelo Distrito Federal. Michelle, claro, deu uma força.
ÁUDIOS DE BOLSONARO E CONEXÃO COM RADICAIS
O
material reunido nas investigações sobre o tenente-coronel o coloca na
cena da sucessão de atos antidemocráticos que já vinham sendo
investigados por Moraes e que culminaram com a invasão das sedes dos
três poderes, em 8 de janeiro. Pela proximidade com Bolsonaro e pela
função que o militar exercia no Planalto, o ex-presidente é peça
indissociável dos movimentos que ele fazia.
Em
mensagens de texto e áudio, o tenente-coronel funcionava como elo entre
Bolsonaro e vários dos radicais que há tempos vinham instigando a
militância bolsonarista a atentar contra as instituições. Há fartas
evidências nesse sentido. Um dos contatos frequentes de Cid era Allan
dos Santos, o blogueiro que vive nos Estados Unidos e em outubro de 2021
teve a prisão decretada pelo ministro Alexandre de Moraes.
Jair
Bolsonaro terá sérias dificuldades para se desvencilhar, ele próprio,
das provas que engolfam seu ex-ajudante de ordens. O material compromete
os dois. O ex-presidente aparece como interlocutor em várias das
mensagens que Cid mantinha em seus aplicativos e foram copiadas pelos
investigadores com autorização de Moraes. Uma série de áudios enviados
por Bolsonaro ao subordinado indicam que ele tinha conhecimento e
controle de tudo o que Cid fazia — seja na seara financeira, pagando as
contas do clã em dinheiro vivo, seja na interlocução com os
bolsonaristas radicais.
CID PAI, CID FILHO E BOLSONARO
Jair
Bolsonaro e o tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid têm uma relação
que transcende a carreira militar do ex-ajudante de ordens. O pai de
Cid, general Mauro Cesar Lourena Cid, foi colega do ex-presidente no
curso de formação de oficiais do Exército. Lourena Cid tornou-se amigo
de Bolsonaro. Em 2019, ano em que foi para a reserva, ele ganhou do
governo a confortável posição de chefe do escritório da Apex, a agência
brasileira de promoção de exportações, em Miami. Com salário em dólares,
o cargo lhe garantiu uma bolada mensal equivalente a mais de R$ 80 mil.
Cid
filho, o ajudante de ordens, também ascendeu na carreira durante o
governo passado. Era major e foi promovido a tenente-coronel. Tido como
um dos mais radicais auxiliares do ex-presidente, o oficial já havia
aparecido em várias das frentes de investigação a cargo de Moraes no
STF.
Cid com Bolsonaro em viagem aos Estados Unidos em março de 2020 - Alan Santos/PR |
Veja galeria:
Ele
foi investigado, por exemplo, por suspeita de atuar no vazamento de
informações de um inquérito sigiloso sobre ameaças às urnas eletrônicas —
parte do velho movimento bolsonarista destinado a descredibilizar o
sistema eleitoral. Em dezembro passado, a Polícia Federal concluiu que o
tenente-coronel Cid e Bolsonaro cometeram crime ao associar falsamente,
durante um live, as vacinas anticovid com o vírus da Aids.
CID ESTÁ NOMEADO PARA CHEFIAR COMANDO DE FORÇAS ESPECIAIS
Antes
de deixar o poder, Bolsonaro dispensou o tenente-coronel Mauro Cid da
função de ajudante de ordens. O ato foi publicado em 31 de dezembro. O
futuro do militar, porém, ficou encaminhado — e de uma forma não muito
agradável para o novo governo. Com a bênção do então presidente, o
comando do Exército o designou para comandar nada menos que o 1º
Batalhão de Ações e Comandos, o 1º BAC, uma das unidades do prestigiado e
temido Comando de Operações Especiais, com sede em Goiânia.
O
batalhão reúne as mais bem treinadas tropas de elite do Exército e seus
homens têm por atribuição, por exemplo, realizar operações de
emergência para debelar ameaças a Brasília e, em eventuais situações de
guerra, cumprir missões delicadas contra alvos tidos como difíceis.
Textos publicados pelo próprio Exército dizem que cabe às tropas do BAC
atuar em “ações contra alvos de alto valor” em “áreas hostis ou sob
controle do inimigo”.
Mais
cedo ou mais tarde, a designação de Cid para o posto será motivo de
mais dor de cabeça para o novo governo na delicada relação com o alto
comando do Exército — a quem, teoricamente, caberia uma eventual decisão
capaz de reverter o ato assinado no apagar das luzes do governo
Bolsonaro. Depois das invasões das sedes dos poderes, em 8 de janeiro,
nas quais Lula já disse abertamente ter visto o dedo de militares,
manter uma unidade tão sensível sob comando de um oficial sabidamente
bolsonarista e reconhecidamente radical certamente será um problema para
o atual chefe do Planalto.
Indagado
pela coluna, o Exército informou nesta quinta-feira que a designação de
Mauro Cid está mantida. O staff de imprensa da corporação disse não
saber, porém, a data em que ele assumirá o comando do batalhão. O
tenente-coronel viajou com Jair Bolsonaro para a Flórida, nos Estados
Unidos, nos últimos dias de 2022.
“É PESSOAL”, DIZ AMIGA DE MICHELLE
A
coluna tentou por mais de uma vez ouvir Rosimary, a amiga que cedia um
cartão para Michelle Bolsonaro. Ela se negou a falar sobre o assunto.
Primeiro, disse que estava em um almoço. “Bom, querido, quando eu for
(informada da investigação) aí eu falo sobre o assunto, tá bom? Mas
nesse momento eu não posso falar. Estou em almoço, estou com meu chefe
aqui em reunião”, disse (ouça abaixo).
Horas
depois, abordada novamente, desta vez no Senado, ela respondeu o
seguinte: “É um assunto tão pessoal… Não quero falar. Até porque eu acho
que não preciso dar satisfação para entrevista. É uma coisa minha,
pessoal. (…) Eu não tô sabendo (da investigação), não, mas se tiver
(sic) eu já vou resolver com os advogados, né? (…) Eu não quero tocar
nesse assunto que não seja com advogado”.
A coluna tentou contato com Jair e Michelle Bolsonaro e com o tenente-coronel Mauro Cid nesta sexta-feira, sem sucesso.
Interlocutores
do ex-presidente e da ex-primeira-dama disseram que Cid precisava lidar
com dinheiro em espécie porque muitas das despesas, especialmente as
que envolviam a primeira-dama, “tinham valor ínfimo” e precisavam ser
pagas diretamente a fornecedores que “prestavam serviços informalmente”.
Apesar
de admitirem haver “confusão” com os valores em espécie, esses mesmos
interlocutores negaram que contas pessoais do clã e de parentes de
Michelle fossem pagas com os recursos que eram provenientes de saques
corporativos do governo.
Não
houve resposta sobre o pagamento dos boletos, especialmente os do
cartão que era cedido pela amiga de Michelle Bolsonaro, e das contas de
familiares da ex-primeira-dama. Tampouco houve explicação sobre as
razões pelas quais os tais “serviços de fornecedores”, por exemplo, não
poderiam ser quitados por transferência bancária.
Atualização
— na noite desta sexta-feira, Jair Bolsonaro respondeu uma série de
perguntas enviadas pela coluna. Ele nega a existência de irregularidades
nos saques e pagamentos feitos por seu ex-ajudante de ordens.
Fonte: Metrópoles
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