Por: Reprodução Por: Michele Oliveira, Folhapress
A
Itália vivia o auge da primeira onda da pandemia do coronavírus quando,
em março, enfermeiros do hospital de Montichiari, na província de
Bréscia, no norte do país, notaram que o médico responsável pelo
pronto-socorro adotava uma prática totalmente fora dos protocolos: a
aplicação de doses mortais de remédios inapropriados em pacientes
internados com sintomas graves da Covid-19.
O
caso se tornou público na última segunda (25), depois que Carlo Angelo
Mosca, 47, recebeu ordem de prisão preventiva domiciliar, suspeito de
ter matado intencionalmente pacientes com o anestésico propofol e
succinilcolina, um bloqueador neuromuscular. Essas substâncias potentes
são indicadas para situações de intubação pela traqueia, procedimento a
que as vítimas não foram submetidas.
Nesta
sexta (29), Mosca foi interrogado por duas horas e meia no Tribunal de
Bréscia. Ele negou as acusações e, segundo seus advogados, deu
esclarecimentos. Pouco antes das 10h, o médico chegou andando sozinho e
foi cercado por jornalistas e câmeras, a quem se limitou a dizer, em voz
baixa: "Sou inocente".
No
entanto, a juíza Angela Corvi, que aceitou o pedido do Ministério
Público para a prisão domiciliar, justificou sua decisão dizendo
reconhecer "graves indícios" de que Mosca cometeu homicídio doloso
qualificado em ao menos dois pacientes.
A
investigação, que começou em maio, levantou evidências de que as mortes
de Natale Bassi, 61, e Angelo Paletti, 79, foram causadas pelas doses
fatais aplicadas pelo médico entre 20 e 22 de março.
Naqueles
dias, o norte da Itália vivia o auge da primeira onda da pandemia, com
números crescentes de novos contaminados e recordes de mortes diárias
-em 22 de março, foram registrados 651 óbitos causados pela Covid-19. A
província de Bréscia era, então, a segunda mais atingida em todo o país,
atrás somente da de Bérgamo, ambas na Lombardia.
Foi
a época mais aguda da emergência sanitária na Itália, o primeiro país
do Ocidente a identificar casos de contaminação interna e a decretar um
rígido lockdown nacional obrigatório, como medida para diminuir a
circulação do vírus. Ainda hoje, a Itália está entre os mais atingidos e
soma 87 mil mortos, sexto lugar em números absolutos.
Além
da falta de conhecimento sobre como se comportavam o vírus e a doença, a
primeira onda foi marcada pela escassez de leitos, equipamentos,
máscaras cirúrgicas e testes.
Segundo
o próprio Mosca declarou em junho, em entrevista ao jornal Corriere
della Sera, o hospital de Montichiari, cidade com pouco mais de 25 mil
habitantes, chegou a ter 570 pacientes de Covid-19 internados na fase 1,
o que exigiu a ocupação de um refeitório com 30 leitos.
No
mesmo período, enfermeiros e operadores sanitários começaram a notar
que o médico estava adotando um comportamento impróprio. Diante de casos
graves que entravam no pronto-socorro, Mosca pedia que alguém buscasse
um ou os dois medicamentos e os aplicava quando estava sozinho. No caso
do paciente Bassi, ele pediu que a equipe saísse da sala de emergência.
"Poucos
minutos depois, a funcionária voltou, percebendo a morte de Bassi,
naquele momento desacompanhado de membros da equipe. O óbito foi
declarado pela doutora [nome omitido], que indicou no prontuário
'repentina parada cardio-circulatória'", diz o documento assinado pela
juíza, com base na investigação.
No
caso de Paletti, funcionários encontraram e fotografaram embalagens
vazias dos fármacos na manhã seguinte à morte do paciente, ocorrida
durante o plantão do médico suspeito.
A
investigação teve como ponto de partida a denúncia anônima de um dos
enfermeiros, no fim de abril. Em princípio, foram alistadas quatro
vítimas. Três corpos foram exumados -o quarto paciente foi cremado.
A
análise toxicológica dos restos mortais de Paletti é uma das evidências
mais contundentes, já que foi comprovada a presença do propofol em
órgãos e tecidos, "em quantidade suficiente para causar o óbito".
O
propofol é um anestésico usado para casos de sedação e que tem como um
dos efeitos "uma depressão respiratória severa". Foi esse o medicamento
encontrado no corpo do cantor Michael Jackson, morto em 2009. Já a
succinilcolina é um relaxante neuromuscular aplicado em anestesia para
facilitar a intubação traqueal. Segundo o parecer técnico, "seu efeito
paralisante depende da dose".
A
investigação conduzida pelo Ministério Público revela que houve consumo
"anômalo" dos dois fármacos entre janeiro e abril do ano passado. Entre
novembro de 2019 e abril de 2020, foram realizadas cinco operações de
intubação traqueal no PS do Montichiari. No entanto, os pedidos de
propofol e succinilcolina à farmácia central cresceram 100% e 70%,
respectivamente, entre janeiro e abril.
Em
nenhum dos prontuários clínicos dos pacientes a quem o médico teria
administrado os remédios consta a comunicação dessas terapias, o que o
torna suspeito de outro crime -falsidade ideológica cometida por
funcionário público.
Em
seu despacho, a juíza afirma que não é possível supor que Mosca tenha
agido a pedido ou com o consenso dos dois pacientes. "Ele administrou as
substâncias não por uma intolerável leviandade, imprudência ou efeito
de uma indesculpável inexperiência, mas sim na plena consciência dos
pressupostos de sua conduta e com intenção de matar."
Mais
adiante, a magistrada diz ser "verossímil" que o investigado estivesse
"determinado a matar movido pela vontade de 'liberar' não só leitos, mas
também recursos instrumentais e energias humanas, físicas e emotivas
dos colegas médicos, dos enfermeiros e dos outros operadores do
pronto-socorro".
Na
mesma entrevista de junho, em que comentava os piores momentos da
primeira fase da pandemia, Mosca contou que assim que a circulação do
vírus foi identificada na Itália, no fim do fevereiro, ele decidiu se
instalar em uma espécie de pousada, para não correr o risco de
contaminar a mulher e a filha, então com 7 anos.
Ficou
assim até o início de maio, por mais de dois meses sem ver a família,
que mora na cidade de Mântova. Sobre essa distância, afirmou: "Foi um
erro, agora me dou conta".
Depois
do interrogatório desta sexta, o Ministério Público deve fazer novas
apurações de acordo com as respostas dadas pelo médico. Ele ainda não é
considerado réu, porque a investigação ainda está em fase preliminar.
Assim
que a prisão preventiva foi decretada, Mosca foi suspenso de suas
funções. Em nota, a administração do hospital classificou as acusações
como graves e disse que está colaborando com as autoridades. A Ordem dos
Médicos da Província de Bréscia ressalta que "se trata de uma
investigação, não de uma sentença'' e que, embora muito grave, é ainda
uma "hipótese de crime".
Fonte: BNews
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